Em continuação à entrevista com os historiadores Maria Lúcia A. Gnerre, Maria Lúcia S. R. Ricci e Edgar S. De Decca sobre patrimônio histórico, publicamos neste artigo as considerações referentes às questões da relação entre meio ambiente e história, considerando a presença constante das paisagens naturais na memória do ado. As respostas versam também sobre a importância efetiva dos relatos individuais, de iniciativas de divulgação da memória de moradores da região – como o Jornal Local tem feito – e, por fim, dos centros de pesquisa, como a UNICAMP, para a ação pública em prol da preservação.
MARIA LÚCIA GNERRE: “Há hoje uma importante corrente na história que pensa a própria paisagem como um elemento da cultura de um povo. Essa abordagem se baseia numa concepção importante – a de que a paisagem também é algo que se constitui historicamente, no olhar dos homens, e pode ser estudada através dos relatos de homens que viveram em períodos anteriores. A paisagem é sempre algo que se constitui no olhar dos homens que observam a natureza. O relato individual permite justamente a compreensão das formas de interação com o meio ambiente, de um individuo e de sua cultura. É muito importante, pois mostra a percepção que aquele indivíduo tem da paisagem, e da história daquela paisagem. A memória é o centro da própria preservação: quando um lugar faz parte da memória coletiva, torna-se muito mais fácil justificar e defender a sua preservação. Recentemente, no Jornal da Unicamp, foi divulgada a pesquisa de uma bióloga da Unicamp, que fotografou na mata do ribeirão cachoeira, na região de Sousas, uma série de mamíferos, incluindo uma onça parda. Sem dúvida, a pesquisa dela ajudou na divulgação da existência de um importante patrimônio ambiental na região, que talvez fosse desconhecido até mesmo pelos moradores locais. No mesmo sentido, as pesquisas ligadas à área de patrimônio podem colaborar com a divulgação da existência de importantes patrimônios históricos e culturais. A pesquisa é uma forma de constituição e divulgação do conhecimento, e é aí que reside o papel central das universidades”.
EDGAR DE DECCA: “A natureza sempre foi o maior desafio para os preservacionistas. Ela pode ser itida de forma positiva e de forma negativa. Esse debate também foi intenso no século XIX. Se itirmos que o tempo da natureza imprime marcas nos artefatos humanos, envelhecendo-os e deteriorando-os (assim como acontece com nossas vidas) devemos deixar que os monumentos e artefatos humanos sofram a ação desse tempo natural. Há outra concepção de preservação que, ao contrário, acredita que o valor simbólico do ado deve ser preservado da ação do tempo e deve ser congelado em sua plenitude. Toda vez que observamos a natureza em seu movimento, ali encontraremos as marcas da vida e da morte, num processo cíclico de nascimento e declínio. O relato individual é frágil, como toda a memória que comporta a oralidade e não se institui como sistema de referência reconhecido para a apreensão do ado. A história se distingue da memória porque ela é reconhecida pela sociedade e por nossa cultura como um sistema de referência simbólica produtor de sentidos do ado. A memória pode conflitar-se com a história porque os sentidos atribuídos ao ado pela história, muitas vezes silencia ou apaga as marcas das memórias coletivas dos grupos. A Unicamp, por exemplo, produz história e, portanto, elabora referências simbólicas do ado reconhecidas institucionalmente e por isso pode ser responsável tanto pela preservação da memória como pela sua destruição e produção dos silêncios”.
MARIA LÚCIA RICCI: “É importante lembrar sempre que a questão ambiental tem caráter eminentemente social. Daí as indagações: como propor uma intervenção que saia da relação custo e benefício? Qual a condição para se apreender as diferentes compreensões do biológico, do simbólico, etc.? A partir da década dos 1970, ou-se a melhor compreender os atores envolvidos com as chamadas questões ambientais, sendo as suas áreas prioritárias as atitudes ambientais, os valores e comportamentos, o movimento ambientalista, o cálculo de riscos da tecnologia e a política ambiental. Mas também o ambiente, noutro modelo, é visto como espaço de vida (depósito de ofertas e resíduos). A percepção pública foi importante para o crescimento do ambientalismo e por isso que a revitalização da sociologia ambiental está associada ao crescimento das preocupações ambientais da população no início dos anos 1990. Cabe lembrar que o movimento ambientalista se caracteriza pela internacionalização e pelo caráter multissetorial. Creio ser salutar o que o Jornal Local vem divulgando. É muito oportuna a existência de uma coluna que vem registrando do antigo morador o que poderá ser perdido com o tempo, e, se possível, também é importante coletar os relatos dos atuais habitantes – que será necessário para o futuro, uma vez que não podemos deixar de registrar e interpretar também o presente. O relato individual é significativo para agilizar um processo de tombamento frente à riqueza de dados que poderá ser coletado (se bem selecionado o depoente) e que deverá ser cotejado, analisado, junto a outros documentos”.